13 de fevereiro de 2012

A explicação para a desigualdade de rendimentos no Ocidente está nos genes?


Leia aqui, na The Atlantic, um artigo perturbante e polémico acerca dos motivos pelos quais, segundo o seu autor, Charles Murray, o fosso entre ricos e pobres nas sociedades ocidentais se tem vindo a agravar. 

Segundo este investigador, vivemos numa conjuntura que valoriza os melhores cérebros e os descendentes das elites estabelecidas, por motivos que tentarei resumir abaixo, supostamente beneficiam de superiores capacidades congnitivas, logo alcançam maiores sucessos profissionais. 

(via The Atlantic)
Para expor a sua teoria, Murray começa por referir que, dada a complexa estrutura organizacional económica das sociedades actuais, o trabalho intelectual é hoje mais valorizado do que nunca.

Assim, as superiores capacidades cognitivas (para utilizar a expressão do autor) de um determinado indivíduo podem hoje ser mobilizadas de forma a que rendam tanto dinheiro que isto tem por efeito o aumento exponencial da remuneração dos mais “inteligentes”.

No fundo, o facto daquilo que está em jogo nos actuais mercados globais serem valores muito superiores àqueles que existiam no passado faz com que o valor atribuído às capacidades intelectuais daqueles que lideram suba também em proporção.

Apoia também a sua hipótese na constatação de que na América, desde 1970, o rendimento das famílias de classe média e baixa tem vindo a cair, a favor das classes mais elevadas. Na realidade, essa queda só não foi mais visível porque a redistribuição fiscal promovida pelos governos atenuou os efeitos desta mudança de paradigma em relação à realidade mais igualitária que havia saído do pós-Segunda Guerra Mundial.

Partindo desta premissa (a de que a elite é melhor remunerada por ter maiores capacidades intelectuais, ideia que adiante abordarei criticamente), Charles Murray sustenta que os pilares da divergência entre ricos e pobres assentam hoje em duas instituições: o casamento e a universidade.

(Refeitório da Universidade de Harvard)
Começando pelo ensino, Murray refere que cerca de 10% das universidades existentes nos E.U.A. acolhem uns espantosos 20% da elite de estudantes cujos resultados nos exames de acesso (os vulgarmente denominados “SAT”) se situaram no grupo de 5% de candidatos com melhores resultados.

Em 2010, pelo menos um dos pais de 87% dos alunos que obtiveram resultados nos SAT acima de 700 (o que é considerado um óptimo registo) tinha formação universitária.

Assentando em dados desta natureza, o autor conclui que as escolas de elite são dominadas pelos filhos das classes média-alta e altas porque estas produzem um número desproporcional de crianças “inteligentes” em relação às demais.

E como é que isto sucede? Por via do casamento.

Assim, sugere o autor, o casamento segue-se à universidade como segundo pilar desta tendência de agravamento das desigualdades sociais.

Neste contexto, o autor refere-se à homogamia, ou à tendência para os indivíduos com características semelhantes se reproduzirem.

Assim, pessoas com formação universitária tendem a casar entre si e, no espectro inverso, pessoas com poucos estudos tendem também a atrair-se mutuamente.

O desequilíbrio neste “mercado dos genes” torna-se ainda mais gravoso quando consideramos que pessoas com formação universitária obtida em escolas de elite tendem também a casar entre si, gerando crianças que, em média, serão, segundo o autor, ainda mais "espertas" ("smart" é a expressão utilizada) que as demais.

A conclusão de Murray e que este espantosamente defende não estar sujeita a refutação, é a de que nas próximas gerações um número desproporcional de crianças excepcionalmente capazes irão descender de progenitores nas classes média-alta e alta, mais especificamente de pais que já pertençam à elite.

Pois bem, toda a argumentação deste artigo, publicado numa das mais prestigiadas revistas americanas, parece-me débil e falaciosa, procurando enviesadamente explicar fenómenos sociais por factores genéticos.

Vejamos porquê.

Comecemos pela premissa a base, a de que os elevados níveis de remuneração que, no fundo, são a causa do agravamento do fosso económico entre as diversas classes sociais, se devem às superiores capacidades cognitivas daqueles que deles beneficiam.

Na realidade, não parece existir nenhuma argumentação "irrefutável" a sustentar esta ideia. Bem pelo contrário, factores como o enquadramento social original e a capacidade de empatia e boa estratégia política no interior das grandes organizações parecem ser os factores preponderantes na obtenção de níveis remuneratórios elevados.

A ser como o autor sugere, os profissionais nos sectores de pesquisa científica integrariam a classe dos melhor remunerados o que, salvo raríssimas excepções, não sucede em lado nenhum.

Como diversos estudos tendem a demonstrar para o sector financeiro, alguns dos profissionais mais bem remunerados nesta área, na prática, não acrescentam qualquer valor especial e o seu estatuto profissional não advém certamente de qualquer mais valia especial em termos cognitivos.

Desconstruindo, então, esta premissa básica, podemos sugerir que o peso do casamento entre iguais não se fará sentir de forma tão evidente na herança genética da descendência (embora seja inegável a sua relevância a todos os níveis, inclusive no que concerne às capacidades cognitivas), mas sobretudo no aumento da possibilidade das crianças serem criadas num meio que, por acção de diversos factores, cultiva e deixa florescer o seu potencial genético.

O enquadramento social também será preponderante para que essas crianças, chegadas à vida adulta, possam usufruir da oportunidade para fazer uso das suas capacidades (e serem remuneradas para tal).

De facto, as crianças que nasçam em "ambientes de elite" tendem a relacionar-se nas suas escolas e na sua vida social com outras crianças igualmente privilegiadas económica e socialmente, pelo que mais tarde, aquando do ingresso na vida adulta, as teias sociais criadas irão potenciar a respectiva progressão profissional. 

Pela negativa, um enquadramento menos favorável tenderá a favorecer relações sociais menos propensas à progressão profissional.

Toda a argumentação contida no artigo, embora aludindo a factos interessantes e que nos devem fazer pensar, parece-me entroncar numa tradição perigosa que procura descortinar nos “genes” a explicação para diferenças de sorte e fortuna entre os homens.

O autor desconsidera a possibilidade da justificação para que uma pequena elite aufira remunerações tão desproporcionais não radicar em maiores capacidades cognitivas genéticas (e portanto recebidas pelos genes dos pais), mas tão somente (ou pelo menos primordialmente) nas diferentes condições de desenvolvimento (não apenas em termos de nutrição e acompanhamento médico, mas também cultural e emocionalmente) e nos diferentes enquadramento sociais que, logo à nascença, separam muitos daqueles que integram as nossas complexíssimas sociedades.

Na realidade, se quisermos encontrar uma base “genética” para as diferenças sociais, então o caminho talvez seja bem diferente e as conclusões acabem por tirar algum brilho deste suposto desfasamento da qualidade da carga genética entre os filhos de uns e os filhos dos outros.


Veja o meu post sobre essa explicação alternativa.


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