Leia aqui, na The Atlantic, um artigo perturbante e polémico acerca dos motivos pelos quais, segundo o
seu autor, Charles Murray, o fosso entre ricos e pobres nas sociedades
ocidentais se tem vindo a agravar.
Segundo este investigador, vivemos numa conjuntura que valoriza os melhores cérebros e os descendentes das elites estabelecidas, por motivos que tentarei resumir abaixo, supostamente beneficiam de superiores capacidades congnitivas, logo alcançam maiores sucessos profissionais.
(via The Atlantic) |
Para
expor a sua teoria, Murray começa por referir que, dada a complexa estrutura
organizacional económica das sociedades actuais, o trabalho intelectual é hoje
mais valorizado do que nunca.
Assim, as superiores capacidades cognitivas (para
utilizar a expressão do autor) de um determinado indivíduo podem hoje ser mobilizadas de forma a que rendam tanto
dinheiro que isto tem por efeito o aumento exponencial da
remuneração dos mais “inteligentes”.
No
fundo, o facto daquilo que está em jogo nos actuais mercados globais serem
valores muito superiores àqueles que existiam no passado faz com que o valor
atribuído às capacidades intelectuais daqueles que lideram suba também em proporção.
Apoia
também a sua hipótese na constatação de que na América, desde 1970, o
rendimento das famílias de classe média e baixa tem vindo a cair, a favor das
classes mais elevadas. Na realidade, essa queda só não foi mais visível porque
a redistribuição fiscal promovida pelos governos atenuou os efeitos desta
mudança de paradigma em relação à realidade mais igualitária que havia saído do
pós-Segunda Guerra Mundial.
Partindo
desta premissa (a de que a elite é melhor remunerada por ter maiores
capacidades intelectuais, ideia que adiante abordarei criticamente), Charles Murray
sustenta que os pilares da divergência entre ricos e pobres assentam hoje em
duas instituições: o casamento e a universidade.
(Refeitório da Universidade de Harvard) |
Começando
pelo ensino, Murray refere que cerca de 10% das universidades existentes nos
E.U.A. acolhem uns espantosos 20% da elite de estudantes cujos resultados nos exames
de acesso (os vulgarmente denominados “SAT”) se situaram no grupo de 5% de candidatos com melhores resultados.
Em
2010, pelo menos um dos pais de 87% dos alunos que obtiveram resultados nos SAT
acima de 700 (o que é considerado um óptimo registo) tinha formação
universitária.
Assentando
em dados desta natureza, o autor conclui que as escolas de elite são dominadas pelos
filhos das classes média-alta e altas porque estas produzem um número
desproporcional de crianças “inteligentes” em relação às demais.
E
como é que isto sucede? Por via do casamento.
Assim, sugere o autor, o casamento segue-se à universidade como segundo pilar desta tendência de
agravamento das desigualdades sociais.
Neste contexto, o autor refere-se à homogamia, ou à tendência para os indivíduos com
características semelhantes se reproduzirem.
Assim,
pessoas com formação universitária tendem a casar entre si e, no espectro
inverso, pessoas com poucos estudos tendem também a atrair-se mutuamente.
O
desequilíbrio neste “mercado dos genes” torna-se ainda mais gravoso quando
consideramos que pessoas com formação universitária obtida em escolas de elite
tendem também a casar entre si, gerando crianças que, em média, serão, segundo
o autor, ainda mais "espertas" ("smart" é a expressão utilizada) que as demais.
A
conclusão de Murray e que este espantosamente defende não estar sujeita a refutação, é a de
que nas próximas gerações um número desproporcional de crianças
excepcionalmente capazes irão descender de progenitores nas classes média-alta
e alta, mais especificamente de pais que já pertençam à elite.
Pois
bem, toda a argumentação deste artigo, publicado numa das mais prestigiadas revistas
americanas, parece-me débil e falaciosa, procurando enviesadamente explicar
fenómenos sociais por factores genéticos.
Vejamos
porquê.
Comecemos
pela premissa a base, a de que os elevados níveis de remuneração que, no fundo,
são a causa do agravamento do fosso económico entre as diversas classes
sociais, se devem às superiores capacidades cognitivas daqueles que deles
beneficiam.
Na
realidade, não parece existir nenhuma argumentação "irrefutável" a sustentar esta ideia. Bem
pelo contrário, factores como o enquadramento social original e a capacidade de
empatia e boa estratégia política no interior das grandes organizações parecem ser os
factores preponderantes na obtenção de níveis remuneratórios elevados.
A
ser como o autor sugere, os profissionais nos sectores de pesquisa científica integrariam
a classe dos melhor remunerados o que, salvo raríssimas excepções, não sucede
em lado nenhum.
Como
diversos estudos tendem a demonstrar para o sector financeiro, alguns dos
profissionais mais bem remunerados nesta área, na prática, não
acrescentam qualquer valor especial e o seu estatuto profissional não advém certamente de qualquer mais
valia especial em termos cognitivos.
Desconstruindo, então, esta premissa básica, podemos sugerir que o peso do casamento entre iguais não
se fará sentir de forma tão evidente na herança genética da descendência
(embora seja inegável a sua relevância a todos os níveis, inclusive no que
concerne às capacidades cognitivas), mas sobretudo no aumento da possibilidade
das crianças serem criadas num meio que, por acção de diversos factores, cultiva e deixa florescer o seu potencial genético.
O
enquadramento social também será preponderante para que essas crianças, chegadas à vida
adulta, possam usufruir da oportunidade para fazer uso das suas capacidades (e
serem remuneradas para tal).
De
facto, as crianças que nasçam em "ambientes de elite" tendem a relacionar-se nas
suas escolas e na sua vida social com outras crianças igualmente privilegiadas económica
e socialmente, pelo que mais tarde, aquando do ingresso na vida adulta, as
teias sociais criadas irão potenciar a respectiva progressão profissional.
Pela negativa, um enquadramento menos favorável tenderá a favorecer relações sociais menos propensas à progressão profissional.
Toda
a argumentação contida no artigo, embora aludindo a factos interessantes e
que nos devem fazer pensar, parece-me entroncar numa tradição
perigosa que procura descortinar nos “genes” a explicação para diferenças de sorte e fortuna entre
os homens.
O
autor desconsidera a possibilidade da justificação para que uma pequena elite
aufira remunerações tão desproporcionais não radicar em maiores capacidades cognitivas
genéticas (e portanto recebidas pelos genes dos pais), mas tão somente (ou pelo menos
primordialmente) nas diferentes condições de desenvolvimento (não apenas em
termos de nutrição e acompanhamento médico, mas também cultural e emocionalmente) e nos diferentes enquadramento sociais que, logo à nascença, separam muitos daqueles que
integram as nossas complexíssimas sociedades.
Na
realidade, se quisermos encontrar uma base “genética” para as diferenças
sociais, então o caminho talvez seja bem diferente e as conclusões acabem por
tirar algum brilho deste suposto desfasamento da qualidade da carga genética entre os filhos de uns e
os filhos dos outros.
Veja o meu post sobre essa explicação alternativa.
Veja o meu post sobre essa explicação alternativa.
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